domingo, 22 de setembro de 2013

Filme: Casablanca (1942)

Casablanca é um clássico extraordinário que se prova notavelmente equilibrado em todas as suas características. É uma história magnífica de paixões e perseveranças e de personagens intemporais que, com todas as palavras icónicas e com a amplitude de falhas e virtudes, tocam profundamente.  

Na 2ª Guerra Mundial, no auge do domínio germânico, Casablanca, em Marrocos, é um ponto de passagem obrigatória para os refugiados que pretendem alcançar as margens americanas através das ligações com Lisboa. Ali, Rick Blaine (Humphrey Bogart), um americano, possui um estabelecimento por onde todos passam. Um dia, Victor Laszlo (Paul Henreid), um revolucionário checo que se opõe ao regime nazi, chega a Casablanca com a sua mulher Ilsa Lund (Ingrid Bergman) à procura da rota para a América. Desconhecido de Laszlo, Ilsa e Rick partilham uma história passada que pode afectar as suas pretensões.

Provavelmente não existe nenhuma fórmula balanceada no cinema; não existe nenhuma concentração ideal de romance, drama e humor. Mas, a existir, Casablanca é a grande e mais perfeita expressão desta soberba e sublime combinação. Casablanca faz apaixonar, faz sentir e faz sorrir; um verdadeiro triunfo e um maravilhoso subterfúgio consumado numa época cinzenta e funesta. Casablanca, que parece tematicamente imparcial à superfície, é uma obra intrinsecamente patriótica, patriótica pelo mundo, pelos valores da igualdade, da liberdade e da fraternidade. Adequadamente, Rick, o protagonista desta intemporal narrativa, interpretado com classe por Humphrey Bogart, é alguém aparentemente neutro, desinteressado e emocionalmente vazio; todavia, alguém que, debaixo desta máscara de salvadoras falsidades, resguarda uma moral imensa e comprometida na integridade. Rick é o verdadeiro benfeitor resignado, alguém que julga agir pela circunstância, negando e jamais atribuindo mérito ao seu natural decoro. Humphrey Bogart dá uma lição de representação e cria um Rick para todos os tempos. 

O primeiro acto de bondade de Rick acontece quando Casablanca nos introduz o Rick's Café Américain, um estabelecimento de folia e de jogos de sorte e azar que sobrevive graças à capacidade de Rick para subverter a autoridade local e manter a neutralidade. No clima de incerteza, o Rick’s é um refúgio cultural e social para acomodados e refugiados, uma porta de acesso à época pré-guerra. Quando Laszlo e Isla entram pelo Rick’s adentro, a sensação de imersão temporal atinge o seu auge. Isla sente-se inundada por uma tranquilidade inesperada, por um estado de espírito que não sentia desde que a guerra a tinha alcançado. O realizador Michael Curtiz captura este momento com admiração, focando a sua câmara no olhar surpreendido da bela Isla, cuja, sem imediatamente se aperceber, reconhece logo a distintiva de Rick, a sua paixão dos tempos de Paris. Ingrid Bergman é aqui, e por aqui adiante, deslumbrante e vibrante.

O primeiro contacto de Rick com Isla, ao som de As Time Goes By, deixa uma primeira explicação para o rancor e para a indisposição que Rick ostenta desde que nos é apresentado. As razões são apropriadamente explicadas mais tarde com recurso a um bonito flashback de Paris quando Rick, navegando nas memórias do seu romance com Isla, é avassalado por uma imensidão de sentimentos que tão bem tinha antes acorrentado. Rick tem a hipótese de retomar o seu romance com Isla; contudo, compreendendo a história de Isla com Laszlo, e o papel deste na guerra, Rick toma a difícil e acertada decisão de fazer o mais digno. Isla parte com Laszlo e Rick, sacrificando a sua paixão, age em concordância com o seu patriotismo, revelando-se o tal benfeitor resignado. Simultaneamente, Rick estabelece uma forte amizade com o Capitão Louis, outro benfeitor que, não sendo resignado como ele, mas mostrando-se analogamente neutro e astuto, age igualmente pela sombra no interesse da integridade, sacrificando o seu interesse pessoal. Louis oferece muito do humor de Casablanca, mas é, discutivelmente, a personagem mais inteligente; Claude Rains estabelece perfeitamente as duas camadas da sua personagem, tornando um provável mau da fita numa personagem que interessa e merece afeição. 

Casablanca é tanto sobre sacrifício pessoal como sobre a necessidade humana de relacionamento, manifestadas de modo preludiar na composição lírica As Time Goes By, um aviso melódico para os protagonistas e para o espectador. Ambos carregam-se de argumentos até ao desfecho catártico de Casablanca e no fim, sem vencedor nem vencido, subjaz a noção de que o que é passageiro pode durar para sempre; Paris ficará para sempre. Casablanca também ficará para sempre. O drama, retocado com romance e humor, enche de esperança. Tal como o Rick’s é um subterfúgio para aqueles refugiados de guerra, Casablanca é um subterfúgio para refugiados das problemáticas diárias, uma porta dourada para o romantismo intemporal, uma acção de purificação que nunca se esgota.

Casablanca é, indubitavelmente, uma das melhores obras a consagrar o grande ecrã. Considere-se a época de ambiguidade em que tal proeza foi construída, o mérito de Casablanca resulta acrescido. De considerar ainda que, a par do alinhamento narrativo, o aspecto técnico é de muita qualidade e de uma beleza cinematográfica perfeita. O mise-en-scène é elegante e acrescenta outra camada dramática à narrativa; é exemplo a cena em que Rick lamenta a vinda de Ilsa e se recorda do seu passado: aqui, a encenação, com o seu jogo de câmaras, luz (reproduzindo um farol distante) e sombra, fomenta o estado taciturno e desesperançado de Rick. As justaposições entre cenários reais e projecções, para a grau de tecnologia da época, são fantásticas. Como uma cereja no topo do bolo, a banda sonora de Max Steiner, no seu teor épico e romântico, presenteia o toque de classe final.


Casablanca é de visualização necessária; se não pelo seu valor técnico, pelo seu valor pedagógico. Muito se tem tentado reproduzir a fórmula de Casablanca ao longo dos anos; mas esta, tal como receitas secretas, artes esquecidas e engenhos perdidos, é praticamente inimitável. É única. É perfeita.  


CLASSIFICAÇÃO: Obra-prima


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domingo, 1 de setembro de 2013

Filme: O Feitiço do Tempo (1993)

São inúmeras as virtudes de O Feitiço do Tempo (Groundhog Day na versão original), uma comédia imensamente despretensiosa que se revela preciosa e intemporal nos pequenos detalhes. À primeira vista, O Feitiço do Tempo poderá passar despercebido e ser tomado por algo genérico construído à volta de um elemento de fantasia curioso. Mas, se lhe for dado a devida atenção, levanta-se sobre O Feitiço do Tempo um véu de tendências corriqueiras reveladoras de uma realidade moralizante, cuidada e sapiencial.

Em O Feitiço do Tempo, Phil Connors (Bill Muray) é um egocêntrico meteorologista de um pequeno canal televisivo de Pittsburgh. Phil encara com desdém a cobertura jornalística de um eventual anual na cidade de Punxsutawney, na Pensilvânia, onde a tradição ordena que uma marmota preveja o fim do Inverno. Relutante, Phil desloca-se para Punxsutawney com a sua nova produtora, Rita (Andie MacDowell), e com o seu habitual cameraman, Larry (Chris Elliott). Feita a reportagem, Phil procura regressar rapidamente a casa. Todavia, uma tempestade de neve retém-no e à sua equipa em Punxsutawney. O que Phil não conta, no entanto, é repetir o mesmíssimo dia incontáveis vezes.       

O Feitiço do Tempo, não obstante a rotação cómica e romântica, desdobra perante o espectador um espelho tentativamente introspectivo. Será que cada um de nós procura ser o melhor de si nas vastas acções e decisões do dia-a-dia, ou será que, como Phil, cedemos à impaciência rotinizada? Será esta, de maneira aproximada, a questão que o realizador Harold Ramis, em colaboração com o argumentista Danny Rubin, pretende colocar à sua audiência com toda a justa pertinência. A jornada de Phil ao longo das incontáveis repetições diárias (constam ter sido na ordem dos 10.000 anos) é um extraordinário turbilhão psicológico de euforias e depressões, paixões e desilusões, que representam vicissitudes do dia-a-dia tão próximas do espectador, intrinsecamente familiares às suas próprias vivências. Phil vive num único dia, embora as quase ilimitadas repetições, o que cada um de nós sente de forma empírica pela sua vida inteira. O feitiço, por assim dizer, é o mesmo; depende de cada qual empregá-lo pelo mais certo.

Inicialmente, perante a possibilidade de omnipotência e impunidade, Phil deixa-se levar pelo entusiasmo e pela actuação a bel-prazer, representando o auge do homem que já se mostrava ser. Até que ponto pode alguém permanecer leviano e indiferente? Com o tempo, Phil compreende que o vazio dentro de si não pode ser unicamente preenchido pelo prazer momentâneo e, a certa altura, com o aproximar de Rita, imperceptível por ela, Phil sente necessidade por algo mais, algo que o tempo, entenda-se, o mesmo dia, não lhe permite ter. Nessa fase, Phil desce à depressão e à completa frustração e contempla o fim da vida; mas o mesmo feitiço que antes tão bem o libertara das suas responsabilidades prende-o agora ao seu infortúnio. Eventualmente, no vazio de soluções, para moralização do espectador, Phil resolve dedicar todo o seu infindável tempo numa metamorfose social para um homem útil, humilde e honesto.


A execução de Harold Ramis por detrás da câmara é pragmática e regular, onde impera a característica feel-good dos anos 90. As actuações são identicamente ordinárias, sem destaques significativos. Aliás, exceptuando uma inteligente montagem que ajuda a avançar e a dar sentido à narrativa, toda a observância de O Feitiço do Tempo é a de um filme trivial. Desengane-se quem assim considera. O Feitiço do Tempo, aos vinte anos, é um clássico imperdível que engloba muito mais, e mais profundo, do que se lhe possa outorgar.               


CLASSIFICAÇÃO: IMPERDÍVEL


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